LIVRO: ESTANTE DA
VIDA
Certo homem, que se
reencarnara a fim de educar-se em duras provas, quais sejam enfermidades,
abandono e solidão, montou a choupana que lhe serviria de casa à beira de
estrada deserta e poeirenta, a cavaleiro de fundo vale, onde uma fonte
permanente mantinha no chão seco larga faixa de verdura.
Viajores iam e vinham
e, fôssem eles ocupantes de
carruagens, ou simplesmente pobres romeiros a pé, ei-los que paravam junto ao
casebre, contentes e agradecidos por encontrarem, ali, com o homem solitário,
uma bênção muito rara na região: a água pura.
O ermitão, em
demonstrações de bondade incessante, várias vezes, diariamente, descia a
encosta agressiva até o manancial e enchia o cântaro, regressando vereda acima,
tão só no intuito de oferecer água cristalina aos viajantes diversos.
Na faina de auxiliar,
entrou em contacto com um Espírito angélico a quem o Senhor incumbira de velar
por todos os que transitassem pela extensa rodovia, e o eremita, profundamente
emocionado e feliz, passou a chamar-lhe Anjo da Estrada.
Estabeleceu-se para
logo, entre os dois, suave convívio. Nenhum dos passantes lhe via o celestial
companheiro; entretanto, para o solitário, aquele benfeitor espiritual se
transformara em presença sublime. Se cansado, eis que o Anjo lhe restaurava as
energias; se doente, recebia dele o remédio salutar. Se triste, recolhia-lhe as
exortações confortativas e, quando em dúvida sobre doenças e dificuldades
naturais do cotidiano, tomava-lhe as sugestões tocadas de amor. O Amigo do Céu
descia com ele até à fonte, tantas vezes quantas fôssem
necessárias, ajudava-o a transportar o grande vaso cheio, narrava-lhe histórias
das Mansões Divinas, recobria-lhe a alma de tranqüilidade e júbilo sereno.
O tempo rolou e
trinta anos dobraram sobre aquela amizade entre duas criaturas domiciliadas em
mundos diferentes.
A estrada era sempre
uma estalagem da Natureza, albergando viajores que se renovavam constantemente,
mas o ermitão, conquanto satisfeito, mostrava agora a cabeleira branca e os
ombros caídos.
Certa feita, um homem
prático, de passagem pelo lugar, em lhe enxergando a cabeça vergada ao peso do
cântaro bojudo, observou-lhe, conselheiral:
- Amigo, porque um
sacrifício assim tão grande? Não seria melhor e mais justo transferir a casa
para a fonte, ao invés de buscar a fonte para casa?
O doador de água
estremeceu de alegria. Como não pensara nisso antes? Da idéia à realização
mediaram poucos dias... No entanto, em carregando o velho material da velha
choca para a reentrância do vale, ei-lo
que vê o amigo angélico em lágrimas copiosas...
- Anjo bom, porque
choras?
E a resposta veio
célere:
- Pois, então, não
percebes? Concedeu-me o Senhor a tarefa de proteger as vidas de quantos se
arriscaram na estrada... Enquanto lá te achavas, oferecendo água límpida aos
que viajam com sede, tinha eu a permissão de trocar contigo as bênçãos da
amizade. Mas agora... Se preferes o menor esforço, é forçoso que eu me resigne
a distância de ti, esperando que alguém se decida a cooperar comigo, junto dos
viajores que me cabe amparar na condição de zelador do caminho!...
O eremita não
hesitou. Suspendeu a mudança, tornou ao lugar primitivo, retomou a sua
venturosa paz de espírito ao pé da multidão anônima a que prestava serviço, e
preferia trabalhar e ser feliz, em companhia do mensageiro celeste. Com quem
partiu para o Mais Além, no dia em que lhe surgiu a morte do corpo.
***
Como é fácil de
ajuizar e de ver, meu caro amigo, abençoe a sua possibilidade de dessedentar os
peregrinos da romagem terrestre com as águas puras de fé viva, esclarecimento,
pacificação e consolo, sem se fixar nos eventuais sacrifícios que isso lhe custe.
Você compreenderá, um dia, que vale muito mais livrar-se alguém de aflições e
tentações, junto dos Espíritos Benevolentes e Amigos, que viver à conta de
nossas próprias imperfeições das existências passadas, e que é muito melhor
desencarnar sofrendo, mas servindo ao próximo, em favor da própria libertação
espiritual, que ter de acompanhar o desgaste repelente do corpo, a pouco e
pouco, em facilidade e descanso, para afundar, de novo, no momento da morte, na
corrente profunda de nossas paixões e desequilíbrios.
IRMAO X
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